128 minutos. Este foi o tempo decorrido entre o nascimento de Luiz Inácio da Silva, em Caetés, subúrbio de Garanhuns, em Pernambuco e o momento em que é aclamado, como a maior liderança sindical do Brasil, em São Bernardo do Campo. 128 minutos cobrindo o período que vai de 1945 até 1980.
Como jurado do Festival de Cinema de Brasília, Mostra do Distrito Federal, estive entre os 1.450 convidados para sua apresentação publicação que aconteceu no Teatro Nacional, às 21h da noite de 17 de novembro de 2009. O burburinho corria solto. A audiência mesclava ministros, senadores, deputados, imprensa, funcionários públicos. Duas dúzias de assentos foram ocupados por deficientes auditivos. E, pasmem, visuais. A sessão foi marcada por protestos da produção do filme contra a organização do festival, que deixou os atores sem assento reservado. Com orçamento de 12 milhões de reais, “Lula, o Filho do Brasil” é o filme mais caro da história do cinema brasileiro e será exibido em quase 400 salas no Brasil, a partir do dia 1º de janeiro.
Havia muita expectativa e a noite era realmente de celebração. As luzes se apagam. Escutamos algumas palavras de ordem: “Cesare! Cesare!”. Uns poucos manifestantes, 10 ou 12 pessoas, sobem ao palco com uma longa faixa com os dizeres: “Lula, liberte Cesare!”. O grupo não empolga a audiência. Estavam gritando sozinhos, continuariam, gritando sozinhos. Extraditar ou não o italiano Cesare Battisti definitivamente não será o assunto da noite. Até que os apresentadores do Festival após os cumprimentos de praxe convidassem ao palco Luiz Carlos Barreto e Fabio Barreto, produtor e diretor do filme. Barretão, o pai, não se fez de rogado e reclamou de maneira agressiva pela ausência de bombeiros e brigadistas para o caso de haver algum acidente, acho isso uma temeridade. Reclamou também dos organizadores por permitir que centenas de pessoas assistissem à estréia, sentados no chão, ocupando qualquer espaço possível e, obviamente, dificultando a passagem em caso de acidente. Foi vaiado. Em seguida usou a palavra o diretor Fabio Barreto – este é seu 8º. Longa metragem – que continuou a ecoar os queixumes do pai e foi ainda mais incisivo: “O Festival não reservou assentos para os atores e a equipe técnica do filme. Estamos aqui todos em pé. Não tem uma cadeira para Glória Pires. Como vamos assistir? Peço que uma fileira, uns 30 lugares sejam desocupados para que possamos nos sentar.” Mais vaias. A dupla passou atestado de pessoas sem noção. Porque não reclamar a quem de direito, no momento adequado? Porque embaçar a noite de estréia do aguardado - e já polêmico filme sobre Lula - com questões miúdas e para as quais, com certeza, a platéia nada poderia fazer? Óbvio que o mal-estar não surgia ali, naquele instante. Bem antes da projeção, o clima de briga entre produção da fita sobre Lula e a (des)organização do festival lembrou clima de feira. Só faltaram, mesmo, as luvas de boxe. Fiquei pensando como seria… a organização da Copa de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. Chega um momento em que amadorismo, realmente, não dá.
Como os jornais trataram da estréia ontem à noite do filme sobre Lula?
O jornal Folha de S.Paulo abriu matéria com o título “Desorganização marca pré-estreia de “Lula”. Destacou em subtítulos que “Paulo Bernardo rebateu críticas ao uso político do filme e desafiou a oposição a tentar fazer o mesmo com seus líderes” e que “apesar da ausência de Lula, estreia atraiu tanta gente que elenco quase ficou de fora; Luiz Carlos Barreto reclamou e acabou vaiado.” O jornal preferiu tratar da desorganização do Festival, o que não é nenhuma novidade, do que do filme que era o tema principal do dia. O Globo foi pelo mesmo caminho: “Confusão e superlotação marcam estreia de filme sobre vida de Lula”. O texto é curto e fala de tudo menos do filme. É mais afeito à crônica social listando autoridades presentes e igualmente autoridades presentes. Destaca a manifestação contra a extradição de Cesare Battisti e as vaias para Luis Carlos Barreto. O Correio Braziliense publicou matéria com a manchete “Lula na telona, poder de pé”. No subtítulo ficávamos sabendo que o filme mesmo seria escanteado: “Superlotação, ministros e parlamentares em pé e produtores assustados. Esse foi o retrato da estreia do filme Lula, o filho do Brasil…” Destacou algumas aspas interessantes: o cientista político Paulo Kramer dizendo que “o filme é o resultado da opinião favorável ao presidente” enquanto David Fleischer, cientista político, acredita que a película foi feita justamente para ter efeito eleitoral. “(efeito eleitoral) foi o motivo principal. Havia a hipótese do terceiro mandato”. O pernambucano Jornal do Commercio: “Filme sobre Lula estreia com emoção e tumulto”
Não sei o que aconteceu com nossos principais jornais mas o fato é que trataram de quase tudo menos do filme. Disseram o que desejavam dizer e escreveram muito sobre nada. Um caso raro de passar batido no bingo. A cartela premiada falava do filme, mas as pedras cantadas ecoavam desorganização, vaias, protestos, medo de incêndio, imensos aplausos mornos. Exemplo acabado do que teremos em 2010. Sendo um dos 1.800 que assistiram esta estréia posso afirmar que a cobertura da imprensa deixou a desejar. E muito. Não tenho a menor dúvida que leitores dos jornais de hoje receberão gato por lebre se desejarem saber como foi a recepção ao sempre falado “Lula, o filho do Brasil”.
O filme de Fabio Barreto, estrelado por Rui Ricardo Diaz, Gloria e Cleo Pires, reproduz na tela grande o mito do herói. Da extrema penúria do sertão pernambucano à periferia do cais do porto de Santos em viagem de 13 dias e 13 noites em um pau de arara e dessa viagem o nascimento de emblemática liderança operária. A matriarca, dona Lindú, vivida por Glória Pires pontua a trajetória. Mulher sofrida, abandonada pelo marido, cheia de filhos pequenos, estrangeira na cidade grande. Como viúva de marido vivo, Lindú protege Lula e seus irmãos do mundo e do pai sempre bêbado, o agressivo Aristides. Ela é a âncora, o chão emocional e a única personagem que infunde valores ao filho. É recorrente seu conselho ao filho prenhe de futuro glorioso: “Se você tem que fazer, vá e faça e se não pode fazer, espere e depois faça” e também o não menos incisivo chamado à perseverança usando o curioso verbo: “Teime, meu filho. Teime”. Dona Lindu é quem tece os fios do destino. A bem da verdade, o nome do filme deveria ser: “Lindu, a filha do Brasil”.
Fiel ao livro de Denise Paraná o filme assume cores do épico. Não temos aqui Moisés abrindo o mar vermelho nem Jivago, em meio à revolução bolchevique de 1917, vivendo tórrido romance com Lara e como fundo a. Mas temos um Zé Ninguém brotando como xique-xique no sertão nordestino e guiado pelo bordão popular do “deixe a vida me levar, vida leva eu”. Toda pobreza quando bem evocada no cinema já traz um que de trágico e daí é um pulo para o épico. No caso desse filme não vemos pobreza, encontramos penúria. Os personagens parecem destituídos de tudo. Cada pequeno dia vivido é uma vitória. Se dona Lindu é a heroína, o pai Aristides é o vilão. Vilão agressivo quando presente. E não faltam situações a nos levar ao mundo das emoções mais sentidas: o frangote que se interpõe entre a mãe e o pai quando este ameaça surrá-la; o ainda imberbe adolescente Luiz Inácio recebendo o diploma de torneiro mecânico do Senac; o casamento e o sonho da casa própria; a morte do primeiro filho e da mulher durante o parto; o acidente na metalúrgica que lhe custou o mindinho; a assembléia com milhares de operários lotando o estádio de Vila Euclides e na falta de microfone a forma encontrada para se passar à multidão seu discurso; a liberdade da prisão, por algumas horas, para ir ao cemitério se despedir da mãe.
Rui Ricardo Diaz, o ator que vive Lula dos 18 anos 35 anos, merece todos os aplausos. Sua performance é cativante e, o melhor, é crível. O diretor, se quisesse, poderia se desencaminhar para o estilo lacrimogêneo, afinal, a história de Lula é em si mesma um roteiro, onde não falta emoção, lágrimas, muitas lágrimas. Mas Fabio Barreto optou por uma obra contida. E acertou em cheio. É que não existe um personagem a ser construído nas telas, e sim, uma história a ser contada na tela.
Outros presidentes populares do Brasil, como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, também tiveram sua história levada às telas. Nos dois casos o aspecto político era predominante. E um detalhe: os filmes foram produzidos após a morte dos personagens-títulos. Ou seja, os arquivos estavam fechados. No caso de Lula os arquivos estão abertos, muito abertos. “Lula, o filho do Brasil” está mais para Dois filhos de Francisco, a obra de Breno Silveira que relata a saga dos irmãos Zezé Di Camargo e Luciano, lançado em 2005. Vale destacar que esta não é a primeira empreitada do cinema de levar Lula para as telas. Não. No entreato temos os peões. As greves e Lula movem o filme Peões, dirigido por Eduardo Coutinho e lançado em 2004. Os depoimentos sobre os movimentos grevistas e sobre as vidas dos operários que participaram deles foram tomados às vésperas da eleição presidencial de 2002; na sua maioria, eles declaram sua paixão por Lula. Entreatos é Lula. O filme de João Moreira Salles, realizado em um período de 40 dias, principalmente entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais de 2002, acompanha o futuro presidente em suas viagens e reuniões de campanha. Se em Peões já se vê, através de imagens de arquivo, um Lula humano, perspicaz, intuitivo, em Entreatos isto é escancarado. Se em Peões temos um Lula sindicalista, combativo, em Entreatos, também lançado em 2004, o que surge é o político articulado e amadurecido. Agora chega a cinebiografia de Fabio Barreto lançando luz sobre a vida de Lula e passando pela narrativa linear do nascimento, infância, adolescência, maturidade. Neste sentido podemos considerar os três filmes como momentos de uma mesma personagem, fictícia por englobar vidas diferentes, mas real ao tratar do tema. Em um primeiro ato tem-se o primitivo e alienado, que em um segundo momento se revolta, combate e que por fim articula e é capaz de influir no seu próprio destino.
Se todos estavam alegres, felizes na longa espera para o início da projeção, aos 20 minutos do filme já percebíamos ondas de emoção tomando o imenso salão. E não havia pieguice. O que emocionava não era apenas o alto poder de convencimento de Rui Ricardo como Lula nem de Glória Pires como Lindu. O que emocionava era ver nas telas o Brasil profundo, aquele que país que sofre, no mais das vezes, calado, aquele país que tem bem pouca semelhança com a penitenciária paulista do Carandiru e com o bairro carioca Cidade de Deus. Assistíamos naquele ambiente - que apenas a magia do cinema pode evocar - a vitória dos que já nasciam marcados para o fracasso e a celebração do improvável sobre o provável. E nada disso foi notícia nos jornais.
O filme que a grande imprensa repercutiu hoje em nada lembrava o filme que assisti ontem no lotado Teatro Nacional de Brasília. Aqueles anos 60 e 70 foram tão bem evocados que, de repente me vi cantarolando o antigo sucesso do Moacir Franco:
“Sua ilusão entra em campo no estádio vazio,
Uma torcida de sonhos aplaude talvez
O velho atleta recorda as jogadas felizes,
Mata a saudade no peito driblando a emoção.”
Veja o trailer do filme